12 agosto 2006

quitéria, de novo

Não posso deixar de registrar o dia de ontem (quinta-feira, 10 de agosto de 2006)


Acontece que contávamos com a sorte, eu e Cláudio (Zohguy), pois queríamos subir no telhado do edifício da Câmara do Comércio para fotografar a cidade e as ilhas, por cima, uma visão, digamos, superior!? Até que ponto? Desde o momento que ele me telefonou, perto do meio-dia, me batia na cabeça essa questão: estou enjoando dos prédios, tanto dos vivos quanto dos mortos, que tanto fotografei no último ano. Eu não sei explicar muito bem, as pessoas, entram no ônibus tristes, cansadas, com a pele cinza. Dor aqui, dor ali. As pessoas inventam picuinhas com coisas tão banais, tão fáceis de se passar por cima, esquecer e seguir a vida adiante. Talvez nem fosse a vida que devesse ser seguida, talvez apenas mais um dia. Mais uma hora, quem sabe? Eu sento no ônibus e ouço as pessoas reclamarem do celular que não funciona, das unhas que quebraram lavando a louça, do professor de cálculo que fez uma prova difícil, da conexão da internet que anda lenta em casa, entre outras coisas tão, mas tão banais que me dá pena de saber que ainda tem gente que gasta tempo pensando nisso. Esse tipo de coisa que vem me ausentando da cidade nos últimos tempos. E eu agradeço isso ao Seu Renato, um grande amigo que tem me mostrado de onde vem a calma, e que, como ele próprio diz: "nada nesta vida é azar, é só falta de oportunidade". Certo está ele. Ele sempre está certo. Eu ouço, ouço, passo horas escutando as sábias palavras de Seu Renato e me convenço que, como foi ontem, mais vale quatro horas ao lado dele do que quatro aulas na faculdade. E ontem valeram. E muito. Foram quatro aulas matadas, com muito prazer, e que renderam muitas histórias, muitos ensinamentos e, claro, muitas fotos.
Pois como eu ia contando, estávamos eu e Cláudio pensando em subir no telhado da Câmara do Comércio. Ele me ligou, tal e coisa, chegou na minha casa por volta das 13hs e, durante o banho, pensei em mudar a rota do passeio. Estava muito claro o dia, um sol muito forte, nada típico no nosso inverno, e imaginei que seria desperdício ficar caminhando pelo centro da cidade. Convidei o Cláudio para irmos até a Quitéria, e por que não? Aceitou na hora e fomos.
Pegamos o ônibus da Quinta, descemos ali perto da Estação por volta das 15hs e resolvemos ir a pé até a casa do Seu Renato (+ - 4km). Não era muito, mas o sol forte dificultava, a magnífica paisagem facilitava. Fomos indo, mata nativa adentro. Entre uma casinha de João-de-Barro e outra, muito papo furado. Primeira parada, uma ponte. Quem passa de carro por ali, não enxerga nada, talvez nem saiba o que há embaixo de onde se passa. Mas lá embaixo desta ponte havia uma cachoeira, de água transparente, onde o sol não bate nunca, e rochas que alguém deixou lá por algum motivo. Resolvemos descer a escalada, um pouco perigosa, porém chegando lá embaixo a visão era inacreditável. Os dois pensaram a mesma coisa: os riograndinos não sabem o que estão perdendo. Tchê, era bonito mesmo!



Continuando a caminhada, era recém 1/3 do trecho, mas essa paradinha me deu fôlego para mais três horas. Não necessitava tanto. Após exatamente 1h10 de caminhada, desde a Estação, chegamos na casa do Seu Renato. Lá estava Dona Zilma aparando a grama, que apontou para o galpão, onde estava Seu Renato arrumando uma tarrafa. Concentrado, muito concentrado, avisei que iríamos até a beira da lagoa enquanto ele terminava o serviço. Não queríamos atrapalhar. A visibilidade estava perfeita, dava pra ver os prédios da cidade, que deixamos para trás para esquecê-los um pouco. Porém, vê-los assim, de fora, de longe, dá uma sensação de vitória, de grandeza, uma grandeza muito mais gratificante do que se tivesse olhando por cima, do telhado do prédio da Câmara do Comércio.

Estas fotos foi o Cláudio que tirou:
não dá pra ver os prédios direito, culpa da câmera dele :P



Após alguns minutos apreciando esta paisagem, voltamos até o galpão. Seu Renato, sempre alegre, ensinou a remendar tarrafa. Com aquela calma de sempre: "pega a linha, passa por aqui, prende com o dedo e faz a volta, viu como é fácil?". Eu só balancei a cabeça afirmando, mas jura que eu conseguiria fazer aquilo de primeira. Como a tarrafa não era dele, e sim de um amigo, não me arrisquei a mexer. No final, ele jogou a tarrafa no chão para ver se estava funcionando direitinho, e orgulhoso ensinou que aquela tarrafa era para lugares mais fundos, tipo a Barra, pois ela forma uma bolsa e o camarão fica dentro dessa bolsa, "não tem como ele fugir".
Entramos em casa para o típico cafezinho da Dona Zilma, com as, já clássicas, bolachas de água & sal, e as docinhas, hmm tão boas! Eu posso até comprar as mesmas bolachas para comer em casa, mas lá na mesa da casa deles tem outro sabor, inexplicável, só indo lá pra sentir. Mostrei algumas fotos que tinha feito das outras vezes que estive lá, inclusive uma que ele aparece mostrando uma caixa cheia de casquinhas de siri. Ele olhou para esta foto e disse: "olha a cara do indivíduo!". Depois do bate-papo-cafezinho, fomos caminhar, conhecer a região, como ele diz. Entramos no mesmo caminho da semana passada, o tal corredor de produção, porém, ao invés de dobrarmos à direita para subir o 'Morro do Osso', fomos reto e entramos na Fazenda Vera Cruz. Ele queria mostrar a 'estrada antiga', que ia desde a BR-392, passando um pouco a Polícia Rodoviária, até a Torotama, um trajeto bem diferente do atual. O pampa se abriu, banhado pelo sol que estava a se pôr, e somente o barulho dos pássaros nos intervia. A Quitéria, que para mim já era linda, se transformou em um paraíso, sem exageros, sem puxação de saco, as fotos dizem tudo:



E nisto, entre uma vista e outra apareciam várias histórias das palavras de Seu Renato. Histórias que me faziam crer que tudo que eu havia aprendido em quatro anos de Bacharelado em Geografia, não servia para nada nesta vida, e o que vale é vivência, na sua forma mais pura. Eu fico desarmado conversando com Seu Renato. Eu simplesmente esqueço qualquer termo técnico de meteorologia, de geologia, de arqueologia, de agronomia e aprendo uma nova geografia. Uma geografia (com letra minúscula mesmo!) que eu desconheço, que talvez nem 1% dos meus colegas de faculdade conheçam e que é muito mais linda, muito mais útil, muito mais poética e muito mais pura que qualquer geografia que aprendemos em sala de aula ou em saídas de campo. O que vale é a vida. E somente ela em sua forma mais nativa.
Eu dispenso palavras para descrever as histórias das caturristas, da mulher de branco que aparece a meia-noite naquele mato, da estrada antiga que levava para a Torotama e todas as porteiras que existiam na beira dela, da casa da Dona Quitéria, do Mato do Índio curandeiro da região no início do século passado, dos seres estranhos que habitam a Quitéria, da direção do vento que se sabe pelo buraco da casinha do joão-de-barro (essa eu me arrepio só de escrever, pois percorremos pelo menos 1km em linha reta, e todas as casinhas estavam voltadas para o mesmo lado, e como diz Seu Renato: "é sinal de que o vento vem de lá na próxima estação"). Precisa de estação meteorológica e computadores caríssimos, quando se tem casinhas de joão-de-barro? Dispenso palavras para descrever o pôr-do-sol fincado no chão do pampa, que nada pobre é. Dispenso palavras para descrever a sensação de orgulho em enxergar todas as luzes da cidade à noite, do alto do Morro do Osso, e saber que estou bem longe daquele lixo. Dispenso palavras para descrever a melhor dor que existe: a de entrar no mato fechado, cheio de unhas-de-gato, à noite, desviando de tunas e com medo de que algum bicho me pegue, e acordar no outro dia faceiro de ver três arranhões sangrando na perna e um no pulso. Sobre as tunas, Seu Renato é bem claro: "cuidado aí, isso dá uma dor, que deusmelivre, de passar uma semana no hospital". Eu gostaria de dispensar palavras, mas não tenho fotos, de uma cena inacreditável: a lua, cheia, laranja, maior que o sol, brotando no horizonte, eu juro que estava maior, muito maior que o sol, e laranja, eu juro... é, não tem palavras, é inacreditável.



Fotos do post: Cláudio ou Titi

Mais fotos, toda semana, atualizado:
flickr.com/photos/tags/seurenato

8 Comments:

At 11:07 PM, Anonymous Anônimo said...

Bah titi!! Belíssimo texto! Realmente conseguisse capturar bem em palavras algo da experiência que é caminhar por aquelas bandas. Mas é claro que palavras não são suficientes, as pessoas precisar ir e conhecer com seus próprios olhos, vivenciar de cabeça a aberta, etc.
Vou postar algumas informações complementares também: Depois que descemos aquele barranco ultra íngreme coberto por paralelepípedos *soltos* para fotografar o "riacho" sob a estrada (e valeu a pena mesmo), você conseguiu subir de volta na metade do tempo q eu levei, me levando a crer que o outro lado que parecia bem pior era, na verdade, bem mais barbada de subir! heheheheeh
Outra: enquanto ele tentava nos ensinar a remendar a tarrafa eu fiquei pensando: claro, super fácil.. primeiro você faz o nó de tal tipo, em seguida de tal tipo, ai enfia daqui, puxa dalí e corta o que restou. Super fácil! :D
Mas aposto que se a gente tentasse, ele iria explicar até a gente de fato conseguir fazer os nós.
O cafezinho da D. Zilma tava matador mesmo! Seria impossível tal café ter o mesmo sabor em casa, pois não estariamos respirando um ar tão puro, nem estariamos relaxando numa cadeira que, naquele momento era a mais confortável do mundo, especialmente depois da caminhada pra chegar até lá. E o café dos outros é sempre melhor, quando acompanhado de boas-vindas, como foi o caso.
E teve mesmo o lance das tunas... Adrenalina puraaaa!!
Lembra quando perguntei: "Mas vocês vão mesmo passar por ai?"
"-Vamos sim!"
Ai pensei: "Tá.. To ferrado..." hehehehehe
Mas a vista valeu a pena... O que são alguns arranhões em troca de uma experiência que sai completamente fora do dia a dia da cidade né? :D
Já to nas pilhas de voltar lá na Quitéria. É só falar! :D

 
At 3:57 AM, Blogger Fabrício Marcon said...

ah, mas que coisa linda isso tudo! obrigado a vocês por nos fazer experimentar com a leitura e com as fotografias uma imagem viva do que vocês experimentaram. quando o titi fala que quatro horas com o seu renato vale bem mais do que quatro aulas da faculdade, eu acabo fazendo um juízo de valores. tenho a sensação de que quando alimentamos a poesia e a "infância imóvel" que permanece em nós e que nos dá a possibilidade louca de recomeçar, o coração pulsa, as narinas palpitam e nos sentimos em movimento. a natureza e suas surpresas são presentes, as pessoas e suas vivências são tesouros.

 
At 6:52 PM, Blogger Renata Freitas said...

demais.

que sensibilidade. assim se vive.

esse bicho que não sei qual é também me picou e afetou todos meus sentidos.

 
At 12:33 AM, Anonymous Anônimo said...

Bah.. Então vou contar um segredo pra vocês... Ultimamente eu não tenho precisado ir no mato pra ser picado por bichos.
Aqui em casa tá um infestação de aranhas e elas me dão todas as picaduras (hahahahahahaha) que eu não queria, nem quero ter.
Pelo menos é só aranha.. dizem que onde tem aranha outros insetos não proliferam. :D

 
At 1:35 PM, Blogger rafitzen said...

muito bom o texto e muito boas as imagens de vocês.
pena que ainda não pude voltar à quitéria, mande aquele abraço pro seu renato. este fim de semana seria uma boa oportunidade. pena que durante a semana ainda estou preso pela máquina..
sobre o bicho, também fui picado, acho que quem o trouxe veio lá da bolívia..

 
At 11:42 PM, Blogger Cynthia Martins said...

que imagens e texto lindíssimos!
depois de descrições e experiências como essas, a gente se pergunta onde se escondiam seu Renato e esses cenários ditos não urbanos.
começo a me questionar sobre o sentido de urbanização e civilidade...

é tudo tão mais fascinante para nós, seres da cidade.
é melhor que seja assim.
senão como é que existiria seu Renato?

 
At 2:05 AM, Blogger Jaque Machado said...

Galera,
Jóia. O texto tá jóia, as fotos estão muito boas. Me criei brincando nestas bandas, quando eu li o post enchi os olhos de saudade.
Rio Grande tem lugares lindos, sim. As pessoas daqui é que adoram reclamar que não se tem nada pra fazer: rio grande tem lugares maravilhosos e vocês mostraram ai mais um deles. joia

abraços.sniffs

 
At 11:08 PM, Blogger /corbata1982 said...

ah então é esse o segredo? haha

abraço,

 

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